Os desafios da empregabilidade da pessoa com deficiência

Por LEIDE CESAR

 

Segundo o último Censo Demográfico realizado no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 45,6 milhões de pessoas declararam ter pelo menos um tipo de deficiência, seja do tipo visual, auditiva, motora ou mental/intelectual. Apesar de representarem 23,9% da população brasileira, o número de pessoas com deficiência em idade laboral que estão no mercado formal de trabalho gira em torno de 1%.

Para entender por que isto acontece é preciso voltar no tempo. Durante grande parte da história da humanidade, as pessoas com deficiência foram consideradas seres à parte da sociedade, ora sendo marginalizadas ora sendo completamente excluídas. Por séculos foram consideradas cidadãs de segunda classe e eram vistas como incapacitadas para o trabalho.

Ao longo do século XX, a pauta da inclusão das pessoas com deficiência passou a ser levantada por Entidades e Tratados Internacionais. A Organização Internacional do Trabalho – OIT foi instituída em 1919 como uma agência da Liga das Nações após a assinatura do Tratado de Versalhes ao final da Primeira Grande Guerra. Especializada em questões do trabalho, principalmente no cumprimento das recomendações e convenções internacionais, a OIT tem por missão promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter acesso a um trabalho digno. Além disso, funda-se no princípio de que a paz universal e permanente só pode basear-se na justiça social e não há justiça social se todos não estiverem incluídos.

Em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, este tema ganhou ainda mais relevância. Como consequência da guerra, surgiu a necessidade de cuidar dos sobreviventes e restituir suas capacidades individuais e sociais. Neste contexto, surgem os centros de reabilitação para tratar e reabilitar as inúmeras sequelas dos sobreviventes das batalhas. Com o tempo, estes centros passaram a beneficiar também as pessoas que já nasceram com algum tipo de deficiência.

Muito além da natureza remuneratória, a atividade laboral tem uma função social de suma importância para a pessoa com deficiência, dando-lhe dignidade e o senso de pertencimento, uma necessidade inerente à condição humana. Através do trabalho a pessoa se vê integrada ao seu meio, contribuindo também para a riqueza de seu país.

Hoje, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Barreiras urbanísticas, arquitetônicas, tecnológicas e, principalmente, barreiras atitudinais, continuam impedindo que as pessoas com deficiência exerçam seu direito ao trabalho. As barreiras de atitudes são as mais perversas e revelam que ainda vivemos em uma sociedade capacitista, que discrimina, oprime e considera a pessoa com deficiência uma pessoa de menor valor e inapta ao trabalho. A sociedade tem, então, a responsabilidade e o dever de eliminar esses entraves para que a igualdade de condições realmente aconteça. 

Mundo a fora, vários foram os estudos e as tentativas para superar essas barreiras e permitir a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, mas ainda hoje este tem sido um grande desafio. 

No Brasil, além das garantias constitucionais destinadas às pessoas com deficiência, outras normas foram editadas para garantir a elas o direito ao trabalho. Em 1991, foi publicada a Lei nº 8.213, conhecida como Lei de Cotas, uma política afirmativa que tem por finalidade servir como instrumento de inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Conforme determina essa lei, todas as empresas que tenham em seus quadros funcionais 100 ou mais empregados deverão contratar pessoas com deficiência de acordo com um percentual que varia de 2% a 5%, a depender da quantidade de funcionários que trabalham na organização.

Neste mesmo sentido, a Lei do Estágio – Lei nº 11.788 – de 25 de setembro de 2008, assegura às pessoas com deficiência o percentual de 10% (dez por cento) das vagas oferecidas pela parte concedente do estágio. Este também é o sentido da Lei 8.112/1990, ao assegurar às pessoas com deficiência o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras. Para as pessoas com deficiência, serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.

A Lei da Aprendizagem – Lei nº 10.097/2000 – prevê a contratação de aprendizes em estabelecimentos de qualquer natureza cujas funções demandem formação profissional. Em 2005, a Lei 11.180 alterou o art. 428 da CLT, com vistas a flexibilizar a idade limite do estágio ao aprendiz com deficiência, que não deve se limitar a 24 anos como nos demais casos. Este mesmo artigo foi alterado pela Lei 11.788/2008 para permitir que o contrato de aprendizagem possa ser estipulado por mais de 2 anos quando se tratar de aprendiz com deficiência.

Vale destacar que a Lei Brasileira de Inclusão também estimula a contratação de aprendiz com deficiência ao prever que a comprovação da sua escolaridade deve considerar, sobretudo, as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização. A LBI prevê, ainda, que para o aprendiz com deficiência com 18 anos ou mais, a validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na CTPS e matrícula em programa de aprendizagem desenvolvido sob orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica. Além disso, para o aprendiz com deficiência, o contrato de aprendizagem não se extingue por desempenho insuficiente ou inadaptação do aprendiz, quando desprovido de recursos de acessibilidade, de tecnologias assistivas e de apoio necessário ao desempenho de suas atividades.

As Leis do Estágio e da Aprendizagem são importantes mecanismos para a colocação profissional de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, na medida em que funcionam como efetivos instrumentos de qualificação dos candidatos a uma vaga no mercado formal. No entanto, ao invés de se valerem desses instrumentos, muitas empresas se amparam no argumento de que há pouca oferta de pessoas com deficiência qualificadas para o trabalho, e assim justificam o descumprimento da Lei de Cotas.

Vale lembrar que, apesar da existirem pessoas com deficiência altamente qualificadas nas mais diversas áreas, esta não é a realidade para a grande maioria. O fato inegável é que a falta de qualificação profissional é reflexo do histórico de exclusão dessas pessoas ao longo de toda sua vida.

Segundo dados do governo, o quadro da empregabilidade das pessoas com deficiência no Brasil, especialmente nos últimos 5 anos, tem apresentado uma pequena melhora. Esta mudança pode ser atribuída à forte pressão da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do Ministério Público do Trabalho, órgãos encarregados de fiscalizar as empresas quanto ao cumprimento das cotas. No entanto, o ritmo da mudança está longe de atender à necessidade desta parcela da população.  

Dados do Ministério da Economia indicam que, em decorrência de ações de fiscalização, 46,9 mil pessoas com deficiência e reabilitados foram contratados em 2018, sendo 44.782 empregados formais e 2.118 como aprendizes. Ao todo, foram 11,4 mil inspeções em todo o país e os números, tanto de operações quanto de trabalhadores contratados após as inspeções, são recordes desde 2003.

O próprio governo reconhece que o espaço da pessoa com deficiência nas empresas ainda é pequeno. A Relação Anual de Informações Sociais – RAIS, mostra que entre 2011 e 2017 o número de pessoas com deficiência no mercado de trabalho passou de 325.291 para 441.339, um acréscimo de apenas 116 mil pessoas. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED, aponta que em 2018 o total de trabalhadores nessa condição era de 442.007 pessoas, ou seja, apenas 668 empregados a mais do que no ano anterior.

Nota-se que as pessoas mais escolarizadas ocupam a maior parte das oportunidades de emprego, uma vez que das 442.007 pessoas com deficiência contratadas em 2018, 301.879 tinham ensino médio ou ensino superior incompleto ou concluído, o equivalente a 68% do total. Por outro lado, as pessoas com deficiência visual e intelectual têm maior dificuldade na inserção no mercado de trabalho porque precisam de mais adaptações no ambiente de trabalho.

Em 2000, o professor José Pastore já se debruçava sobre esse tema, com análise profunda a respeito da empregabilidade das pessoas com deficiência no Brasil. Em uma fala que continua atual, Pastore pondera que para muitos empregadores é cômodo justificar a não-contratação pela não-existência de políticas públicas estimuladoras. Esse passivismo, porém, não se ajusta ao regime democrático. É de responsabilidade das empresas atuarem junto aos poderes públicos no sentido de sugerir e ajudar a formular políticas públicas que sejam mais eficazes em relação ao propósito pretendido.

Diante deste quadro é preciso indagar se as cotas e demais medidas são suficientes para superar a dívida histórica que temos com as pessoas com deficiência e garantir-lhes um direito que é fundamental.  Passados 28 anos da criação da Lei de Cotas, a maioria das empresas brasileiras continua resistindo bravamente ao comando legal, e o pequeno aumento no número de contratações, conforme reconhece a Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, se dá em razão da fiscalização e não de forma espontânea. 

Daí surgem também outros questionamentos. Qual a qualidade desses postos de trabalho? Que tipo de apoio e ajuda técnica são oferecidos a esses trabalhadores? Eles estão incluídos ou segregados dentro da empresa? Eles têm as devidas progressões de cargos? E, ainda, eles permanecem nesses empregos? Todas essas questões devem ser consideradas para que a política pública de empregabilidade seja considerada como uma real inclusão dessas pessoas. 

O que se observa é que, de um lado estão as empresas que desconhecem o universo da pessoa com deficiência, suas necessidades e seus direitos e do outro, estão as pessoas com deficiência com pouco acesso à escolaridade adequada, à capacitação profissional, à acessibilidade e aos apoios necessários.

É preciso concordar com o professor José Pastore quando ele diz que a informação e a conscientização são decisivas para a inclusão da pessoa com deficiência. Ao contrário, a ignorância e o despreparo levam ao lado oposto, que é o caminho para a discriminação e o preconceito.

A complexidade da matéria requer uma avaliação profunda das medidas existentes e dos resultados apresentados até o momento. A mudança depende muito mais de informação, educação e incentivos do que de punição.

 

Fontes:

DECRETO-LEI nº 5.452, de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 

LEITE, F.; RIBEIRO, L.; COSTA FILHO, W. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016.

PASTORE, José. Oportunidades de Trabalho para Portadores de Deficiência. São Paulo: LTr, 2000.

Relação Anual de Informações Sociais – RAIS. Disponível em http://www.rais.gov.br/sitio/index.jsf  

 

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LEIDE CESAR é Advogada, Conselheira do Coddede – Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência do DF, Analista Judiciária aposentada do Supremo Tribunal Federal, Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e Cofundadora do projeto Asas da Inclusão.

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