Por LÍVIA BORGES
Há um tipo de preso comum que é bem informado. Conhece os fatos da realidade. Recebe informações em tempo real. Sabe sobre os dramas que comovem a opinião pública. Forma opinião. Faz escolhas. Desloca pelotões. Recusa certos presos. Quando quer, sabe também o que se passa na casa alheia, trabalho, conta bancária e na vida dos filhos dessas pessoas. Ele tem tecnologia, informantes e intermediários, a despeito do submundo do cárcere.
Tudo isso porque preso tem intenções e valores. Pode parecer estranho para quem se coloca aquém das margens que separam os transgressores, imaginar que eles tenham valores. Julgamos ser os únicos referenciais valora8vos.
Por vezes, estamos tão absortos em nossa rotina, que já nem percebemos o que se passa com aqueles que estão ao lado. Os presos, se quiserem, poderão até nos informar, demonstrando conhecer a rotina de nossos familiares quando precisam nos ameaçar. E eles também confrontam indiretamente nossas noções de segurança, mostrando-nos que a cada dia nos tornamos reféns do consumo, do medo, do individualismo, dos muros, da solidão, da alienação, do adoecer. Mundo estranho, mundo dividido. Distante do viver natural, harmônico.
Mas não é só isso. Presos também sabem demonstrar os valores que possuem. A criminalidade tem sua “é8ca”, faz cumprir seus mandamentos e não perdoa transgressões. São eficientes nisso. Possuem hierarquia definida; alianças, ainda que temporárias; códigos de conduta; valores e estratégias. Sabem defender seus valores. Quando um pai que mata a própria filha ou um ex-namorado que mata a ex-namorada, é cogitado de ser transferido para um determinado presídio, os presos de lá se rebelam. Não aceitam. E são respeitados, por serem temidos. Ninguém quer confusão, quanto mais, assumir o risco de uma rebelião. Também é conhecida a sentença extra judicia de um estuprador.
A justiça marginal é rápida, não tem burocracia, mesmo quando se utiliza de expedientes como suborno para custear a segurança de um presidiário durante sua permanência na cadeia. A execução da sentença marginal acompanha os valores conhecidos pelos presos. No entanto a agilidade e a certeza da punição da justiça marginal não educa, não evita que crimes semelhantes sejam come8dos. Talvez seja a falta de legitimidade em tais soluções marginais que confronte o postulado de Beccaria de que não é a severidade da pena que educa, e sim a certeza de sua aplicação. Nesse caso, ambas caem por terra.
Mas a celeridade nos processos marginais tem outras serventias. Pode inibir ou agravar decisões de quem define os limites da marginalidade, de quem sentencia, de quem define a transferência ou permanência de um preso e de quem está na ponta da atuação, ostentando o poder do Estado – o policial militar. Os criminosos de baixo ao alto escalão, enquanto exibem midiaticamente lições de “ética” para a sociedade, também divulgam seu poder, propagando uma ideologia perversa, hedonista, debochada e 8rana, onde a vida é trocada por centavos, ou nem isso. Por estarem do outro lado da linha, sentenciam sumariamente quem defende a ordem nas fronteiras entre estes dois mundos.
O desafio é para quem tem o dever de defender os direitos de todos os cidadãos, não importa a qual lado pertença, mesmo sabendo que pode ser sentenciado em ambos os lados. Como policial, recebe do Estado para isso, e obtém com isso a provável revolta ou a conseqüência da inépcia e injustiça do Estado para com a sociedade. E porque aufere renda para isso, tem sua vida, como diz Rousseau, como “um dom condicional do Estado”. Dádiva ambígua que compõe parte da sombra deste guerreiro.
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LÍVIA BORGES é Psicóloga, com especialização em psicossomática; advogada, mestre em Ciência Política; autora dos livros: ALMA DE GUERREIRO – transformar, servir e liderar como fonte de poder e cura e A SOMBRA DO GUERREIRO – o impacto dos estados anômicos na imagem do policial militar. Disponíveis pelo site:
www.proconsciencia.com.br/loja